quinta-feira, 6 de março de 2003

À luz clara da manhã, postava-se diante do espelho e via-se. Via a si mesmo e à nudez de seu corpo, inerte por dentre as vestes, como quem via um ponto negro no papel. Diante do espelho, era outro. Era apenas a imagem-miragem de um ser, corpóreo e visível. Mas não sentia o corpo. Por alguns instantes a materialidade de sua vida parecia se dissolver no desejo de ser ninguém. Ou concentrar-se no centro mudo de sua ausência de dor e entusiasmo, no seu ponto negro. Não tinha vontade além da vontade de não ser, de não ter, e, principalmente, de não haver sido. Tanto tempo empregado em vão. Tudo passado. E nada podia ressuscitar-lhe do momento morto do agora. Da sensação de haver falhado. E da obrigação de seguir em frente, mesmo sem vontade, em um caminho que não era o seu. Havia se perdido em algum ponto, em algum momento, como ali sentia perderem-se as formas de seu corpo na luz que explodia do espelho. Estava mudo, sem ter o que contar. Não queria mais ser.