terça-feira, 1 de outubro de 2002

na massa

vai de mon amour
blusa de abajur
óculos escur apaziguando o sol
no domingo a caminho da praça

óculos ray-ban
raio de tupã
no pulso pulseira, no corpo collant
mostra a pele pelo rasgo da calça

pode ser de farda ou fralda
arrastando o véu da cauda
jóia de bijouteria
lantejoula e purpurina
manto de garrafa pet
tatuagem de chiclete
de coroa ou de cocar
pode se misturar

na massa
na massa
na massa
na massa
some na massa

sai de chafariz
bico de verniz
saia de safári sorriso de miss
camiseta de che guevara

plástico metal
árvore de natal
de biquini xale bata ou avental
e uma pinta pintada na cara

pode vir de esporte ou gala
de uniforme com medalha
braço cheio de pacote
nada debaixo do short
transbordando seu decote
gargantilha no cangote

(Arnaldo Antunes/Davi Moraes)


Achei essa música a cara da Créia!
Apontamento

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mil pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçaram-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e riem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A mnha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem porque ficou ali.

(Álvaro de Campos)

Poema encontrado, hoje, pela visão que tenho, caco que é, de Lindus.
Favela

Meio-dia

O morro coxo cochila
O sol resvala dezagarzinho pela rua
torcida como uma costela

Aquela casa de janelas com dor-de-dente
amarrou um coqueiro do lado

Um pé de meia faz exercício no arame

Vizinha da frente grita no quintal:
- João! Ó João!

Bananeira botou as tetas do lado de fora
Mamoeiros estão de papo inchado

Negra acocorou-se a um canto do terreiro
Pôs as galinhas em escândalo

Lá embaixo
passa um trem de subúrbio riscando fumaça

À porta da venda
negro bocejou como túnel


(Raul Bopp)


O morro, a cavaleiro da cidade, cujas luzes brilham ao longe. Platô da terra com casario ao fundo, junto ao barranco, defendido, à esquerda, por pequena amurada de pedra, em semi-círculo, da qual desce um lance de degraus. Noite de lua, estática, perfeita. No barraco de Orfeu, ao centro, bruxuleiam lamparinas. Ao levantar o pano, a cena é deserta. Depois de um prolongado silêncio, começa-se a ouvir, distante, o som de um violão plangendo uma valsa que pouco a pouco se aproxima, num tocar divino, simples e direto como uma fala de amor. Surge o Corifeu.

(Orfeu da Conceição - Vinicius de Moraes)




(Cidade de Deus - Fernando Meirelles)


Outros tempos, sensibilidades diversas. Há distância entre as imagens e o real. Mas percebe-se a realidade diretamente, sem imagens?
CATA-PIOLHO DO REI DO CONGO
(embalo de rede)

Ó cata-piolho
me empresta o teu sono
Os zoinhos piquininho
já quase fechou

O sono entrou nos zóio
Afundou na escuridão
A piroca piruquinha
tá molinha. Moleceu

Já são quatro Já são oito
Eu vou ver quem é que vem
Tá chegando o Presidente
no seu palácio real

Já são sete Já são oito
O rei Congo chegou
Chegou com elefantes
sapato de verniz

Iaiá fez quentinho
Rei Congo drumiu
Papagaio pena verde
ai, me conte que tu viu

O elefante foi à guerra
mas morreu o capitão
Deixou um anel de prata
e um tambor de papelão

Ai já vem chegando o sono
numa rede de algodão
Pra fazer um dormezinho
Pum-pum Para-ti Pum

Rei Congo Sorongo
sapato de verniz
Iaiá fez quentinho

Cante bem devagarzinho
Pum-pum Para-ti Pum


(Raul Bopp)