segunda-feira, 15 de agosto de 2005

ENTRE INFERNO E CÉU
O Belo e o Bem na iconografia européia sobre a América (sécs. XVI-XVII).


Lo que aquí vi fue que vimos una infinitíssima cosa de pájaros de diversas formas y colores, y tantos diversos papagayos, y de tan diversas suertes, que era maravilla: algunos colorados como grana, otros verdes y colorados y limonados, y otros todos verdes, y otros negros y encarnados; y el canto de los otros pájaros que estaban en los árboles, era cosa tan suave y de tanta melodía que nos ocorrió muchas veces quedarnos parados por su dulzura. Los árboles son de tanta belleza y de tanta suavidad que pensábamos estar en el Paraíso Terrenal, y ninguno de aquellos árboles ni sus frutas se parecían a los nuestros de estas partes. Por el río vimos muchas especies de pescados y de diversos aspectos. (Américo Vespúcio)

Condenados a se sentir estrangeiros no mundo físico até a redenção, os cristãos sempre foram marcados por uma melancolia causada pela queda de Adão e Eva do Paraíso, pela perda do espaço ao lado de seu criador, e por um igual desejo do retorno. Entre o inferno e o céu, a teologia cristã encarregou-se de consubstanciar, no mundo físico, uma manifestação deste objeto de desejo cristão, o Paraíso Terrestre. Localizado em um espaço inacessível e proibido ao homem devido a limitações de origem divina e por barreiras naturais – o Paraíso esteve ladeado por muros flamejantes, isolado em desertos ou situados em altas montanhas de ventos fustigantes–, a busca do sítio paradisíaco foi tópico constante dos escritos teológicos, da cartografia e das narrativas de viagem medievais, e de seus correlatos modernos. Desconhecida, a paragem do Paraíso na terra constituiu um fenômeno migratório; um mito geográfico. As pistas que davam as coordenadas do local sagrado, acreditava-se, haviam sido indicadas por Deus nas escrituras. E a partir da leitura destas pistas, os cristãos fizeram o Paraíso existir próximo à Índia cristã, no Ceilão, no extremo Oriente ou ao norte do mundo, para, mais tarde, situá-lo na América do Sul.
Mito geográfico, nos mapas, nas gravuras e pinturas o paraíso foi representado de diversas formas, em distintas localidades. Até o fim da Idade Média, a via preferencial de sua exposição imagética foi, sem dúvida, a figuração do casal primevo, Adão e Eva. O casal era representado, às vezes, de forma descritiva: um homem e uma mulher nus, situados em torno da Árvore do Conhecimento e próximos à serpente. Em outras, "assumiam la secuencia temporal-narrativa típica del gótico tardio, [y] se mostraba la tentación y la expulsión". Contudo, com o aproximar-se da modernidade, a representação do Paraíso planteou novos rumos: a tradição iconográfica começava a se deslocar da visão do casal que o habitou para o ambiente entorno. Transformando-se, a iconografia do Paraíso gerou a imagem que hoje predomina em nossas mentes, o Jardim do Éden. No painel esquerdo do tríptico Jardim das Delícias de Bosch, por exemplo, temos uma das primeiras imagens desta revolução da representação, que podemos considerar uma liberação da paisagem . Nela, o paraíso é, pictoricamente, um arborizado jardim, repleto de pássaros e animais exóticos, como a girafa e o elefante, animais míticos, como os unicórnios, e animais monstruosos, que se dispõem em torno da Fonte da Vida. Um espaço natural, ou melhor, paisagístico, onde a história do pecado original se desenrola. Um ambiente carregado de elementos exóticos que marcam seu caráter extra-europeu, provocando estranhamento. Ao mesmo tempo, uma imagem do espaço original de todas as espécies.
O movimento de transformação da iconografia do Paraíso parece estar intimamente ligado, como se apreende nos textos de Vespúcio, à aventura européia na América. A nova iconografia encontrou um forte paralelo entre as idéias correntes acerca do espaço original e as palavras dos primeiros homens a correr o Novo Mundo com o olhar: a exuberância da natureza americana, com matas tão densas que os pássaros somente podiam penetrá-las sozinhos, não em bando; as árvores que sempre verdes, em eterna primavera, que nunca perdiam as folhas e recendiam perfumes; os peixes magníficos e a fauna que era toda distinta da européia; os pássaros belíssimos e de todas as cores; enchiam os olhos dos aventureiros europeus, recheando-os de maravilhas e estupor. A primeira caracterização edênica deste continente foi feita no relato de Colombo, que acreditou encontrar-se perto do Éden, conforme indicavam os sinais que lera na exuberante natureza. Não por acaso, o deslumbramento dos viajantes com a abundância da natureza americana coincidiu, temporal e imaginariamente, com a mudança na postura do europeu frente ao sítio sagrado.
A natureza edenizada da América facilitaria ao olhar europeu o deslocamento do sítio paradisíaco para a América. A diversidade e exuberância da fauna e flora marcariam seus traços distintivos e estrangeiros com relação à Europa, necessários para o reconhecimento da terra dos pais primeiros: espécimes animais tanto da América, quanto das exóticas África e Ásia, compunham os quadros naturais do Paraíso. Acima de Adão, numa gravura de 1504, Dürer fez pousar na Árvore da Sabedoria um papagaio. Na gravura que abria o primeiro tomo da obra de Theodor de Bry dedicada à narração imagética da conquista da América, atrás do casal primevo e em torno de uma cabana indubitavelmente americana, desenrolam-se cenas da vida dos homens na natureza. Ainda que ambas imagens permaneçam presas ao parâmetro medieval de representação do Paraíso, a presença da natureza americana em suas composições dá ao Paraíso, em face à Europa, feições estrangeiras. Já no painel do Jardim das Delícias de Bosch, a Árvore cujo deleite do fruto foi fatal a Adão e Eva es un agave, una espécie americana .


Vem dançar, Kabiyesi. Vem dançar.
Que a vida é contenda. Contenda das boas.
Deite o pano branco sobre minha casa,
e vem dançar.

me ensina a lutar
me ensina a bater
me ensina a paz
me ensina a dançar

Vem dançar, Kabiyesi. Vem dançar.
As horas felizes
1
De suas duas tias Zenóbia sempre recebia dádivas quando menos esperava. Uma, a versada em frases e palavras, doou à sobrinha as metáforas mais divinas. A outra, afeita aos afetos duráveis, deu-lhe uma imagem de Sant Teresa D'Ávila. Com elas, Zenóia sentia-se livre de entraves e aprendeu a criar sozinha suas próprias paisagens. Cada regalo que ganhava despertáva-lhe o apelo da novidade. Ao ponto de chegar à claridade de falar um dia que, ao contrário do que muitos diziam, existir não é um plágio.
(O Livro de Zenóbia - Maria Esther Maciel)