sexta-feira, 18 de agosto de 2006

Caríssimo sempre bem criado amigo,

estive e estou muito bem, nesse fim de primeiro mundo. Houve feriado prolongado, em louvor à Santa Virgem, à cerveja, e ao festival de rock local! Para completar, estropiou-se o sistema operacional de meu computador. Foi essa a causa de meu desaparecimento.

É curiosa a vida por aqui. Por mais que queiram me convencer do contrário, acredito que a razão flamenga seja prima-irmã da portuguesa, mas com largos traços germânicos. Explico-me: quando se trata de se levar a vida com praticidade, impera a lógica lusitana; quando o que está em jogo é o ego, vêem-lhes os ares da superioridade da raça. Venho agora mesmo da agência dos correios, onde pude comprovar a primeira afirmação desta tese minha. Conto-lhe.

Na entrada de meu edifício, não há as corriqueiras campainhas, marcadas com os nomes de cada morador. Pelo contrário, há uma apenas, onde se pode ler uma advertência dizendo que, após esta porta, há outra, com as campainhas. Pois bem, assim sendo, há que se abrir esta porta, que nunca se encontra fechada à chave, e tocar as campainhas no corredor, logo antes de uma segunda porta, que permanece, essa sim, trancada. Operação bastante complicada, o sei. Mas, seja como for, o carteiro nunca acerta, e se a remessa for volumosa, tenho que buscá-la na agência central. E lá fui.

Lá chegando, entrei na fila do serviço expresso. Para minha sorte, havia somente duas pessoas à minha frente, a esperar o atendimento. Esperei cerca de 20 minutos, e logo percebi que o senhor que nos atendia não conseguiu resolver o problema de nenhum dos meus companheiros de espera. Chegou minha vez, solicitei a remessa. Esse senhor pegou o papel com as informações sobre meu pacote, andou para um lado, andou para outro. Ao cabo de 10 minutos me diz: Scrijnmakersstraat, 15? Olho para o papel em suas mãos e aponto: 16!!! Ohhhhh!! Aqui está!

Dessa, "Até o criado-mudo reclamou..."

O mesmo se passou durante o tal festival de rock. Durante este festival, diversos palcos são montados pelas praças e esquinas do centro histó(é)rico da cidade, as ruas no entorno são fechadas, e o acesso a elas, e aos shows, se dá perante o pagamento de suntuosos montantes. O acesso à minha residência, que se situa entre dois dos palcos principais, foi, obviamente, fechado. Não apenas por um lado da rua, que dá direto nos palcos, mas pelos dois. Assim sendo, para sair de casa, ou regressar, fui obrigado a exlicar, e re-explicar, que eu morava naquela rua, e queria ter acesso à minha vivenda.

Afff...

Isso explica algo...

Mesmo que isso me obrigue a assumir minha própria intolerância e preconceito, posso dar um exemplo que comprovaria a segunda parte da hipótese. Acaba de estourar uma grande controvérsia nacional. Um dos maiores representantes políticos dos flamengos atacou os francófonos do país, dando a entender que eles não eram capazes de aprender o flamengo, quando viviam nas regiões onde ele predomina. Um quiprocó, um bafafá que está dando o que falar... O representantes dos francófonos (que mais lembra o Daniel Azulai) retrucou, e assim vai.

O que posso dizer é que os próprios flamengos, alguns e não todos, ou falam muito mal o francês, ou se recusam a usá-lo, mesmo perante os estrangeiros. E nessa briga de diz que me diz, ou que nada se diz, o país vai se separando.

Bom, fico de expectador. E, enquanto isso, aproveito minha estadia. Para evitar os contratempos do sobredito festival, fui-me à França. Chovia em Paris, mas tudo estava lindo, como haveria de ser. Comemos muito bem num chinês de preço razoável, e visitamos o novo museu, dedicado à arte de nós, povos primitivos. Uma beleza. Estéticamente perfeito. Uma modernidade só. Dou parabéns sobretudo aos designers do museu, que conseguiram um meio fantástico dos textos de referência museográfica e legendas das obras não interferirem em nossa degustação da arte desses primitivos: as letras dos letreiros foram feitas, em branco, sobre acrílico preto, iluminado por trás. Uma belezura, de um tipo tão pequeno que não atrapalha o visu geral, e nem permite saber se aquele colar de pedrinhas era da América, África ou Oceania.

Com algum esforço descobri que boa parte desses primitivos nasceu e viveu no já há muito passado século XX... vou abrir uma loja de cocar ali perto - índio quer apito, mas também sabe lucrar!

Depois, fui ao norte da civilização francesa, no dia de Maria. Em Cambrai, fomos ver a procissão com os bonecos gigantes do casal de "mouros", Martin e Martine. A estória dos dois é complexa, por isso a conto como bem quero: ouvi dizer que este negro pertencia a um exército europeu, e da negra se apaixonou. Mas, ambos eram proibidos de se unirem, carnal ou não carnalmente, talvez por não serem católicos de batismo e ancestrais. Mas, Martin, que de ferro ainda não era, deve ter com Gregório cantado, que

O querer não tem razão,
que a vontade é mui sutil,
e assim por onde quer entra,
e talvez não quer sair.

Deram bananas à branquelada e fizeram seu carnaval.

Descobertos, foram condenados a tocar os sinos da cidade, marcando as horas. Apiedando-se deles, um padre local, que haveria de ser bem amigo de picardias e fornicações (como haveria de ser), mandou que se contruissem dois "automátos", que marcassem as horas por eles. Assim, foram-se os dois viver felizes para sempre, enquanto os pobres bonequinhos negrinhos lá estão, até hoje, a badalar a cidade.

Deles fiz algo como umas 70 fotos. Espero ter acesso à máquina, que me foi emprestada, para copiar algumas...

Depois, fui passear nos subterrâneos de Arras... muito bem, muito bom. E, assim vai a vida...

Voltando pra casa, pensei em reformular as propostas para o milênio. A primeira haveria de ser que: A cada mês, ficam obrigados os carrilhões a marcarem as horas, e quartos de horas, com uma nova seqüência musical, que não há de se repetir, no espaço de um ano.

Quero ver Martine se acabando num Lundu.

Um abraço nos seus,

René

PS: hoje, na rua, o ceguinho, em seu alaúde tocava, o Tico-tico no fubá. Pena que sem trocados eu estava!

Ainda há que se dizer, que triunfante passei pelo arco de Paris, ao som Cotidiano de Chico Duarte, que a rádio veiculava.

Paris, todo dia faz tudo sempre igual...

no jantar, teremos feijoada,
assim me calo com a boca de feijão, ão, ão!