quarta-feira, 10 de agosto de 2005

Ver e Traçar


Há uma imensa diferença entre ver uma coisa sem o lápis na mão e vê-la desenhando-a.

Ou melhor, são duas coisas muito diferentes que vemos. Até mesmo o objeto mais familiar a nossos olhos torna-se completamente diferente se procurarmos desenhá-lo: percebemos que o ignorávamos, que nunca o tínhamos visto realmente. O olho até então servira apenas de intermediário. Ele nos fazia falar, pensar; guiava nossos passos, nossos movimentos comuns; despertava algumas vezes nossos sentimentos. Até nos arrebatava, mas sempre por efeitos, conseqüências ou ressonâncias de sua visão, substituindo-a, e portanto abolindo-a no próprio fato de desfrutar dela.

Mas o desenho de observação de um objeto confere ao olho certo comando alimentado por nossa vontade. Neste caso, devemos querer para ver e essa visão deliberada tem o desenho como fim e como meio simultaneamente.

Não posso tornar precisa minha percepção de uma coisa sem desenhá-la virtualmente, e não posso desenhar essa coisa sem uma atenção voluntária que transforme de forma notável o que antes eu acreditava perceber e conhecer bem. Descubro que não conhecia o que conhecia: o nariz de minha melhor amiga...

[...]

A vontade continuada é essencial ao desenho, pois o desenho exige a colaboração de aparelhos independentes que estão sempre pedindo para resgatar os automatismos que lhes são próprios. O olho quer vagar; a mão arredondar, tomar a tangente. [...]

Ver linhas e traçá-las. Se nossos olhos comandassem mecanicamente um estilo de traçar, bastaria olhar um objeto, isto é, seguir com o olhar as fronteiras das regiões diversamente coloridas, para desenhá-lo exata e involuntariamente. Desenharíamos, do mesmo modo, o intervalo de dois corpos, que, para a retina, existe tão nitidamente quanto um objeto.

Mas o comando da mão pelo olhar é bastante indireto. Muitas etapas intervêm: entre elas, a memória. Cada relance de olhos para o modelo, cada linha traçada pelo olho torna-se elemento instantâneo de uma lembrança, e é de uma lembrança que a mão sobre o papel vai emprestar sua lei de movimento. Há transformação de um traçado visual em traçado manual. Mas essa operação é suspensa na duração da persistência daquilo que chamei “elemento instantâneo de lembrança”. [...]

O artista avança, recua, debruça-se, franze os olhos, comporta-se com todo o corpo como um acessório de seu olho, torna-se por inteiro órgão de mira, de pontaria, de regulagem, de focalização.


(Degas Dança Desenho – Paul Valéry)

Até Pensei
(Chico Buarque - 1968)


Junto à minha rua havia um bosque
Que um muro alto proibia
Lá todo balão caía
Toda maçã nascia
E o dono do bosque nem via
Do lado de lá tanta ventura
E eu a espreitar na noite escura
A dedilhar essa modinha
A felicidade
Morava tão vizinha
Que, de tolo
Até pensei que fosse minha

Junto a mim morava minha amada
Com olhos claros como o dia
Lá o meu olhar vivia
De sonho e fantasia
E a dona dos olhos nem via
Do lado de lá tanta ventura
E eu a esperar pela ternura
Que a enganar nunca me vinha
Eu andava pobre
Tão pobre de carinho
Que, de tolo
Até pensei que fosses minha

Toda a dor da vida
Me ensinou essa modinha
Que, de tolo
Até pensei que fosse minha