terça-feira, 3 de setembro de 2002



Gustav Klimt
A mais bonita

(Chico Buarque)


Não, solidão, hoje não quero me retocar
Nesse salão de tristeza onde as outras penteiam mágoas
Deixo que as águas invadam meu rosto
Gosto de me ver chorar
Finjo que estão me vendo
Eu preciso me mostrar

Bonita
Pra que os olhos do meu bem
Não olhem mais ninguém
Quando eu me revelar
Da forma mais bonita
Pra saber como levar todos
Os desejos que ele tem
Ao me ver passar
Bonita
Hoje eu arrasei
Na casa de espelhos
Espalho os meus rostos
E finjo que finjo que finjo
Que não sei


Essa música me lembra a G.H., e o Schroeder também.
Para a Menina no Espelho, um trecho de um trabalho meu:

Uma mulher com duas faces, um elmo dourado em sua cabeça; um cervo próximo a ela; um espelho em sua mão esquerda, na direita uma flecha, e um peixe Rêmora nesta enroscado. O Elmo significa a Sabedoria do homem prudente em estar, para defender-se, armado com sábios Conselhos; o cervo mostra que devemos ruminar antes de resolver alguma coisa. O espelho nos ordena examinar nossos defeitos, conhecendo a nós mesmos. A Rêmora, que pára um navio, alerta para não tardamos em fazer o Bem, quando o Tempo favorece.(Cesare Ripa)

Alegórica mulher, a Prudência tem duas faces. Mirando-a, encontramos uma corriqueira face humana. Uma, apenas. O alegorista, que a esta dama nos faz ver, por um significativo artifício, escondeu seu segundo rosto na face de um espelho. Quase ingênua, um tanto alheia, esta senhora Prudência olha a si, à sua outra face, que se posta sobre a externa face de vidro. Enfeitiçada ou perdida parece esta mulher, imersa que está na grandiosa tarefa que este atributo, seguro em sua mão esquerda, lhe parece ditar: “examine seus defeitos”, “conheça a si própria”.

Ora, sua face oculta, a outra face, nada mais é que a primeira, em imagem especular. Invertida, mas não menos real que a outra – pois quem poderia afirmar, com toda certeza, qual rosto mira a qual? Não é a segunda face a da beleza, com a qual tendemos nos ver: é a dos defeitos, nosso renegado rosto sombrio.

Mas, perigo, há: o de ver nossa outra face: conhecer a si próprio não é tarefa que se cumpre impunemente. As conseqüências são muitas, às vezes trágicas. Perder-se – um espelho é também labirinto. Através de sua superfície acessamos o desconhecido de nós, de nossa natureza, história e mundo. Mundo invertido e avesso que se abre como fonte de conhecimento, e perdição. Num baralho austríaco do século XV um coringa do sexo feminino segura um espelho para – para nós! A imagem do espelho, figura masculina de torvo aspecto, traz a seguinte inscrição: ‘Coringa feminino olhando para o seu rosto de idiota risonho ao espelho.’

Voltamos à Prudência! Esta dama nos alerta: o olhar que lançamos ao espelho, o ver-se invertido de nós no outro, o olhar que constrói nossa identidade e inventa no outro uma alteridade que o separa de nós, que deixa de ser o olhar-ponte que nos liga, une, trazendo o outro para dentro de mim, e me levando até ele, é na verdade um olhar injusto, que não vê mais que o desejado, que nega ao outro a possibilidade de existência na visibilidade – na sua real visibilidade – que o prende do outro lado do vidro, para que não nos ameace, com sua diferença, a integridade. Lembra também que além da face, da margem do espelho, há existência, há um outro que não é apenas miragem, que sobrevive debaixo dos escombros das projeções de nossos medos, desejos e esperanças, que respira seus próprios medos, desejos e esperanças, mas que se encontra atado ao vazio de exercer a sua identidade perante nós: pois nós não o veríamos! A Prudência diz: mire-se no espelho do outro, reconheça-o no espelho, acredite no que vê: ele é outro. Então, aja... A rêmora, que soluciona conflitos e litígios, encontra-se do outro lado da plana face, é especular.

... em Paris durante a primeira metade do século XVIII, o Pe. Zallinger, da Companhia de Jesus, planejou um estudo das ilusões e erros do povo de Catão; num levantamento preliminar anotou que o Peixe era um ser fugitivo e resplandecente que ninguém havia tocado, mas que muitos alegavam ter visto no fundo dos espelhos. (...) Segundo Giles, a crença no Peixe é parte de um mito mais amplo, que se refere à época legendária do Imperador Amarelo.

Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além disso, muito diferentes; não coincidiam nem os seres nem as cores nem as formas. Ambos os reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, a gente do espelho invadiu a Terra. Sua força era grande, porém ao cabo de sangrentas batalhas as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Este rechaçou os invasores, encarcerou-os nos espelhos e lhes impôs a tarefa de repetir, como numa espécie de sonho, todos os atos dos homens. Privou-os de sua força e de sua figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia, entretanto, livrar-se-ão dessa mágica letargia.

O primeiro a despertar será o Peixe. No fundo do espelho perceberemos uma linha tênue e a cor dessa linha não se parecerá com nenhuma outra. Depois, irão despertando as outras formas. Aos poucos diferirão de nós, aos poucos deixarão de nos imitar. Romperão as barreiras de vidro ou de metal e desta vez não serão vencidas. (...)
No Yunnan não se fala do Peixe e sim do Tigre do Espelho. Outros acreditam que antes da invasão ouviremos do fundo dos espelhos o rumor das armas.
(Borges)
Com minha morte, muita coisa ficou por dizer. Minha boca calou-se para sempre. Enquanto os dedos de Schroeder cantavam ao piano pela Europa, e encantando ouvidos na casa de Mozart. Marcie mudou-se para longe; deixando Bobis de bob’s. Formaram-se Creia, Mel e Ana H; já Carol, está quase. Nasceram Frida e Lorie; respectivamente, minha sobrinha e minha filha- duas lindas gatinhas. E eu aqui, no limbo, ausente.



A gata de Lenora
Ando caído de amor, pelos caicais de amor, do meu amor.
IX
ONDINA

... Eu acreditava escutar
uma vaga harmonia que o meu sonho encantava,
um sussurro próximo, semelhante no ar,
ao canto entrecortado de uma voz triste terna.

(Os dois gênios - Ch. Brugnot)


- Escuta! Escuta! Sou eu, Ondina, quem toca levemente com gostas de água os sonoros losangos de tua janela iluminada por melancólicos rios de luar; e vê aí, vestida de tafetá, a dama do castelo que do balcão contempla a formosa noite estrelada e o belo lago adormecido.
“Cada onda é uma ondina que nada na corrente, cada corrente é um caminho que serpenteia até o meu palácio, e meu palácio está feito de matérias fluidas, no fundo do lago, no triângulo do fogo, da terra e do ar.”
- “Escuta! Escuta! Meu pai, coaxando, fustiga a água com um ramo de amieiro verde; e minhas irmãs acariciam com seus braços de espuma as frescas ilhotas de ervas, de nenúfar, de gladíolo, ou zombam do salgueiro decrépito e barbado que pesca com uma vara.”
Terminada a canção, suplicou-me que pusesse eu seu anel no meu dedo para ser esposo de uma ondina, e visitar com ela seu palácio e ser o rei dos lagos.
Como eu respondesse que amava uma mortal, zangada e despeitada verteu algumas lagrimas, soltou uma gargalhada e desvaneceu-se entre aguaceiros que escorriam claros em meus vidros azuis.

(Gaspar de la nuit - Aloysius Bertrand – 1842)


Há muito, gosto dessa estória. De amor frustrado e loucura. Gosto tanto, talvez, como Ravel, que a narrou em música. Gaspar de la nuit – Trois poèmes pour piano d’aprés Aloysius Bertrand. Digo narrou-a, pois esta música, diferente da igualmente bela Ondine de Debussy, narra, e não descreve. Debussy, foi um mestre da narração musical. Suas composições, erigidas na ânsia da criação de imagens sonoras, nos fazem ver os objetos aos quais se dedica – e, entre estes, a ondulante criatura. Para tanto, lança mão dos procedimentos descritivos – procedimentos estes que nos apresentam o estado, a natureza dos seres ou coisas a que se referem. Que nos transmitem suas características, e suas formas. Que nos fazem vê-los, mentalmente, como se à nossa frente estivessem. Que suprem sua ausência, criando imagens que, com um máximo de perfeição, o substituem. Simulacros: imagens que têm existência própria, pois se desprende do corpo que as emitem; diria Lucrécio. E, já Ravel, este nos conta uma estória. A estória do amor frustrado de Ondina, onde o que conta é menos saber são suas feições, ou as daquele que a rejeita. E sim, de se transmitir a sucessão de estados – psicológicos, quem sabe – pelos quais passam a rainha dos lagos. Estados que se transformam, e que são encadeados, por ações: por sua declaração de amor, pela reação negativa do homem que ama, pela sua desilusão e desespero, pelo seu desaparecer. E Ravel narra, como todo bom narrador, colocando, na estória, sua própria experiência; sua música. E os dedos do pianista fazem surgir Ondina, Ondina e sua declaração, Ondina e sua súplica, e a gargalhada de Ondina, para, enfim, Ondina desfazer-se no ar, como os sons de um piano.

Para ouvir Ondine, de Ravel, prefiro a gravação de Ivo Pogorelich; de Debussy, a de Arturo Bennedetti Michelangelo.
Post-Mortem

Levanto do meu leito de noturno descanso. E conto a (des)matéria de minha pós-vida. Sábado. Dia da criação. Por macabro descuido, ergo-me demasiado cedo do leito onde jazia. Aproveito o momento para entreter-me com Os outros – filme bom, embora previsível para quem o vê do lado de cá. Assim, começou o dia. Nublado e frio. E, à noite, antes de recolher-me, elevo meu espírito com uma boa leitura.

LIVRO TERCEIRO DOS FANSTASIAS DE GASPAR DA NOITE
A Noite e suas Ilusões

II

Scarbó


Deus, meu, concede-me na hora da morte, as súplicas de um monge, uma mortalha de pano, um ataúde de pinho e em ligar seco. - As Ladainhas do Senhor Marechal

Morras absolvido ou condenado – murmurava Scarbó esta noite em meu ouvido –, e terás por mortalha uma teia de aranha, e já me encarregarei de amortalhar a aranha contigo.
Com os olhos vermelhos de tanto chorar, respondi: “Dá-me ao menos por mortalha uma folha de álamo, que me traga o hálito do lago.”
- Não – respondeu sardônico o anão –: serás pasto do escaravelho que todas as tardes sai a caçar mosquitos deslumbrados pelo sol poente.
- Preferes, pois – repliquei sem deixar de chorar –; preferes que uma tarântula com tromba de elefante me sorva?
- Bem, consola-te – acrescentou –. Terás por mortalha as tiras cravejadas de ouro de uma pele de serpente, nas quais te envolverei como uma múmia.
“E da tenebrosa cripta de São Benigno, onde te deixo de pé contra a parede, poderás ouvir à vontade como choram as crianças que estão no limbo.”.

(Gaspar de la nuit - Aloysius Bertrand – 1842)