quarta-feira, 30 de outubro de 2002


O BRINQUEDO DO POBRE


Quero dar a idéia de uma distração inocente. Há tão poucos divertimentos que não sejam criminosos!

Quando sairdes, de manhã, com a firme intenção de vagabundear pelas estradas, enchei os bolsos de pequeninas invenções de um soldo e, pelas tavernas, ao pé das árvores, presenteai os meninos desconhecidos e pobres que fordes encontrando. Então vereis como lhes crescem desmesuradamente os olhos. A princípio, não ousarão tocar no presente; duvidarão da própria felicidade. Depois, suas mãos agarrarão vivamente o brinquedo e eles fugirão, como fazem os gatos, que, tendo aprendido a desconfiar do homem, vão comer longe de nós o bocado que lhes damos.

Numa estrada, por trás das grades de um vasto jardim, ao fundo do qual surgia a brancura de um lindo castelo batido de sol, via-se uma criança fresca e bela, vestida de uma dessas roupas de campo, tão garridas.

O luxo, a ociosidade e o espetáculo habitual da riqueza tornam esses meninos tão belos que nos parece terem sido feitos de outra massa que não a dos filhos da mediania ou da pobreza.

Ao lado dela, jazia sobre a relva um brinquedo esplêndido, tão novo quanto o seu dono, envernizado, dourado, com um traje cor de púrpura, e coberto com plumas e vidrilhos. O pequeno, porém, não se ocupava com o seu brinco favorito, e eis o que ele observava:

Do outro lado da grade, na estrada, entre os cardos e as urtigas, havia outro menino, sujo, raquítico, tisnado, um desses garotos-párias em quem um olho imparcial descobriria a beleza, se o limpasse da repugnante pátina da miséria.

Através daquelas vergas simbólicas que separavam dois mundos, a estrada real e o castelo, o menino pobre mostrava o seu brinquedo ao menino rico, e este que o pequeno porcalhão atraía com afagos, agitava e sacudia, numa espécie de gaiola, era um rato vivo! Os pais, decerto por economia, haviam tirado o brinquedo da própria vida. E as duas crianças riam uma para a outra, fraternalmente, com dentes de uma brancura igual.

(Charles Baudelaire - O spleen de Paris)
Essa imagem me lembra a Maria Luiza...



... e o tanto feliz que estou,

pareço até menino pequeno!



(Milton Nascimento - retrato por Juan Esteves)


Quando adolescente, tinha para mim que Milton Nascimento era um dos maiores intérpretes da música brasileira, e uma das mais belas e bem trabalhadas vozes que existiam. Contudo, eu não o ouvia – não aceitava seu repertório. Na verdade, eu me esforçava em não gostar de suas músicas, ou de qualquer música de seus companheiros de esquina: adolescente que era , achava importante afastar-me do gosto musical da geração anterior à minha. Por vezes, a recusa a músicas como Caçador de Mim, Coração de Estudante e Nos Bailes da Vida (para ater-me às mais conhecidas) decorria de uma avaliação errônea de meus sentimentos. Soavam-me, aquelas músicas, como frutos que tendiam à mobilização demasiado fácil e imediata das emoções dos ouvintes. E que, para tanto, empregavam símbolos de uma forjada mineiridade. Mas, na verdade, aquelas músicas me emocionavam – e viriam, hoje, a me emocionar mais ainda –; e isso não era aceitável. O problema não estava nas músicas, mas em minha sensibilidade ainda frágil, ainda não impregnada da atmosfera das cidades históricas abarrotadas de estudantes e de sua cultura, dos ares montanhosos, dos festivais de inverno, do barroco. E do gosto por um determinado tipo de música e de teatro que se faz na rua, em meio a pessoas que, de desconhecidas, tornam-se amigos e companheiros, mesmo que por alguns instantes. Um tipo de cultura e um tipo de sentimento e postura que ainda marcam a arte mineira, como a do Grupo Galpão. Amizade e fraternidade (formas distintas de se expressar ao tratamento cordial entre pessoas), sopraram-me, são as chaves para o entendimento da obra do Clube da Esquina. Atuando num momento em que os artistas brasileiros buscavam alternativas para lidar com a censura ou enfrentar o regime militar – a exemplo das canções de protesto –, o Clube, assim como a Bossa Nova, parecia-me um movimento desprovido de conteúdo contestatório, a despeito de sua imensa força de mobilização e encantamento. No entanto, a aparente frugalidade das músicas do Clube era, na verdade, um refinado meio de mobilizar valores sociais importantíssimos para a construção de uma vida pública sadia no Brasil. Amizade e fraternidade, antes que um apelo fácil aos nossos sentidos e sentimentos, eram poderosos instrumentos de mobilização das pessoas em prol da construção de bens comuns. Não por acaso, são estas as forças mobilizadoras que se detona para a construção do cooperativismo e, em escala menor, dos mutirões e campanhas de solidariedade. O Brasil é um país no qual a esfera pública encontra-se sempre por instaurar ou, quando se forma, não se perpetua. Problema este que foi, repetidas vezes, atribuído a uma infiltração desvirtuadora de valores privados na esfera pública. Mas, há que se notar que a construção do público no Brasil, quando ocorre, vem quase sempre impulsionada por valores privados. Fato este que talvez indique não um problema, mas uma especificidade da formação da política e do bem público no Brasil: a sua não independência da esfera privada que, através dos valores e sentimentos que gera, dá forma e vigor à esfera pública . Milton Nascimento e seus companheiros pareciam pressentir aquilo que os cientistas sociais estão a descobrir: ao se chamar à cena a amizade e a fraternidade, mesmo que através da música, é possível mobilizar forças de transformação e gerar um clima de cooperativismo e de ação conjunta. Um clima de irmandade que reapareceu no Brasil quando as pessoas se uniram em torno de um projeto de nação, de um sentimento de esperança e, principalmente, de um ideal, mesmo que inconfesso, de companheirismo. Quem nos últimos dias não recebeu nas ruas um sorriso, um aceno, uma buzinada simpática de um total desconhecido apenas pelo fato de estar usando um broche em forma de estrela? O princípio é o mesmo, mas os meios de sua manifestação são diferentes: antes foi a música, hoje, as urnas. Os tempos não mudaram, foram mudados. E agora podemos expressar, diretamente e sem medo, o que, individualmente e em conjunto, desejamos; ainda que a voz de Milton Nascimento continue sendo a mais bela.

sábado, 26 de outubro de 2002



e do mundo cuidaremos, como cuidamos de nós; pois se o telefone tocar, a boca sorrir, o carro buzinar, o cachorro latir e o beijo estalar, todo som será o eco de um violino azul tocando alegrias



aquí, encontrei esta saída

no meu aniversário, troco dissertações, monstros, selvagens e imagens por muito sushi e saquê
meus amigos, meus parentes, e meu amor
Da ociosidade nasceu o sentido de se contar uma história. Quando o tempo transcorre devagar e o tédio do nada fazer, ou da repetição monótona de um trabalho (que nos ocupa as mãos mas não a mente), faz com que nos esqueçamos de nós mesmos, abrimos nossos sentidos em receptiva atenção. Nesses momentos de distensão , entregamo-nos ao ato de contar e ouvir reais ou fictícias histórias, notícias memoráveis de terras distantes, de feitos únicos, de saberes tradicionais ou de novos conhecimentos. Com tais narrativas nos entretemos; e do prazer de as ouvir, e contar, retemos sua memória, criando uma rede de narradores e ouvintes que as perpetuam pela sua constante transmissão e conservação. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Para garantir o conhecimento de suas histórias por aqueles que não conheceram as maravilhas de mundos distantes, e logo impedir que desaparecem, Marco Pólo, e outros ilustres viajantes, colocaram no papel, em forma de texto, a matéria de suas memórias. Perpetuou-se, pode-se dizer, uma tradição dos relatos de viagem...

Disso venho me ocupando. Mestrado, mestrado, monstrado... bicho feio, louco para engolir minha cabeça. E cuido de meu Lindus também - o que é muito bom. Por isso faltam-me tempo e criatividade para escrever neste blog. Que puxa... Além do mais, pasmem!, estou no meu inferno astral.

E meu inferno astral é assim: como não dou muita bola pra ele, o pobre ataca quem está à minha volta, criando problemas. E haja bom humor para tratar dos pepinos que se espalham na minha horta. Mas, às vezes, ele me pega na curva, e me joga no chão. Fico chato, e triste. Deprimido mesmo. Sem saber porque.
G.H., Lindus e Ana H. ... cliquem aqui .



linda e competente

sábado, 5 de outubro de 2002

Frida pacifista: com a cabeça em meu mouse, dormiu.
bh, sempre moderna...




(trolleybus, 1902)


...e de memória sem lastro.



(conjunto arquitetônico da pampulha - oscar niemeyer)

só para dizer que o show do gilberto gil, em comemoração ao dia da ecologia (de são francisco, na verdade) e ao projeto de recuperação da lagoa da pampulha, foi emocionante. não só pelo moço, e sua música, mas pelo lugar: a praça são francisco, onde cresci, é um cenário lindo! além disso, belo horizonte é uma das poucas cidades onde podemos ir para a multidão sem receio. foi ótimo, pena que eu estava sem certa companhia.
para frida e lóri:


meia-noite e um


não se preocupe
gatinha borralheira


aquela estória
da carruagem de Cinderela
é uma grande abobrinha



(Romeu Montecchio)


(Cena de Rua - Emiliano Di Cavalcanti - 1931)
Neste momento, está a Frida no meu colo, a ronronar. De tamborim que mia a geladeira velha, quanta manha...

Frida



(Madame Riviere, sobre Ingrés - Melinda Copper)


Lóri



(La Velata, sobre Raphael - Melinda Copper)
É amanhã... eleições e aniversário de namoro!

A gente nem sabe que males se apronta
Fazendo de conta, fingindo esquecer
Que nada renasce antes que se acabe
E o sol que desponta tem que adormecer
De nada adianta ficar-se de fora
A hora do sim é o descuido do não
Sei lá,
Sei lá
Só sei que é preciso paixão
... já diriam Toquinho e Vinicius. E eu aqui, estetizando a política, politizando a estética, para viver um grande amor, em paz!

quarta-feira, 2 de outubro de 2002

HISTÓRIA

Nossa história é assim:
Vamos pras Índias!

Dias e dias os horizontes se repetem
- Olha! Melhor mesmo é buscar vento mais pro fundo

Uma tarde um marujo disse:
- Ué! Que terra é essa?

Velas baixaram E desembarcaram

- Terra como é teu nome?
Cortaram pau Saiu sangue
- Isso é Brasil!

No outro dia
o sol do lado de fora assistiu missa
Terra em que Deus anda de pés no chão!

Outros chegaram depois Outros Mais outros
- Queremos ouro!
A floresta não respondeu

Então
eles marcharam por uma geografia-do-sem-lhe-achar-fim

Rios enigmáticos apontavam o Oeste
A água obediente conduziu o homem

Começou então um Brasil sem-história-certa
A terra acordou-se com o alarido de caça
de animais e de homens

Mato-grande foi cúmplice nas novas plantações de sangue

Mulher foi espremer filho no escondido
E veio o negro
Trouxe o sol na pele
e uma alma de nunca-mais carregada de vozes

Foi desbeiçar terra
Alargaram-se as lavouras
Brasil encheu-se de queixas de monjolo
Sol espalhou verão nos canaviais das fazendas
O mato escondeu escravos
com inscrições de chicote no lombo

Em noite rural
Os bruxos reuniram-se para experimentar forças contra o branco
Deus montou num trovão que se quebrou na floresta
Árvores tinham medo que o céu caísse

Brasil-nenê foi crescendo...

O sol cozinhou o homem
e a geografia determinou os acontecimentos

Um dia
O capitão Pedro Teixeira com 1000 canoas ô ô
entrou águas-arriba no Amazonas
acordando aquela imensidão sem dono

O Brasil embarrigou para o Oeste

(Raul Bopp)

terça-feira, 1 de outubro de 2002

na massa

vai de mon amour
blusa de abajur
óculos escur apaziguando o sol
no domingo a caminho da praça

óculos ray-ban
raio de tupã
no pulso pulseira, no corpo collant
mostra a pele pelo rasgo da calça

pode ser de farda ou fralda
arrastando o véu da cauda
jóia de bijouteria
lantejoula e purpurina
manto de garrafa pet
tatuagem de chiclete
de coroa ou de cocar
pode se misturar

na massa
na massa
na massa
na massa
some na massa

sai de chafariz
bico de verniz
saia de safári sorriso de miss
camiseta de che guevara

plástico metal
árvore de natal
de biquini xale bata ou avental
e uma pinta pintada na cara

pode vir de esporte ou gala
de uniforme com medalha
braço cheio de pacote
nada debaixo do short
transbordando seu decote
gargantilha no cangote

(Arnaldo Antunes/Davi Moraes)


Achei essa música a cara da Créia!
Apontamento

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mil pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçaram-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e riem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A mnha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem porque ficou ali.

(Álvaro de Campos)

Poema encontrado, hoje, pela visão que tenho, caco que é, de Lindus.
Favela

Meio-dia

O morro coxo cochila
O sol resvala dezagarzinho pela rua
torcida como uma costela

Aquela casa de janelas com dor-de-dente
amarrou um coqueiro do lado

Um pé de meia faz exercício no arame

Vizinha da frente grita no quintal:
- João! Ó João!

Bananeira botou as tetas do lado de fora
Mamoeiros estão de papo inchado

Negra acocorou-se a um canto do terreiro
Pôs as galinhas em escândalo

Lá embaixo
passa um trem de subúrbio riscando fumaça

À porta da venda
negro bocejou como túnel


(Raul Bopp)


O morro, a cavaleiro da cidade, cujas luzes brilham ao longe. Platô da terra com casario ao fundo, junto ao barranco, defendido, à esquerda, por pequena amurada de pedra, em semi-círculo, da qual desce um lance de degraus. Noite de lua, estática, perfeita. No barraco de Orfeu, ao centro, bruxuleiam lamparinas. Ao levantar o pano, a cena é deserta. Depois de um prolongado silêncio, começa-se a ouvir, distante, o som de um violão plangendo uma valsa que pouco a pouco se aproxima, num tocar divino, simples e direto como uma fala de amor. Surge o Corifeu.

(Orfeu da Conceição - Vinicius de Moraes)




(Cidade de Deus - Fernando Meirelles)


Outros tempos, sensibilidades diversas. Há distância entre as imagens e o real. Mas percebe-se a realidade diretamente, sem imagens?
CATA-PIOLHO DO REI DO CONGO
(embalo de rede)

Ó cata-piolho
me empresta o teu sono
Os zoinhos piquininho
já quase fechou

O sono entrou nos zóio
Afundou na escuridão
A piroca piruquinha
tá molinha. Moleceu

Já são quatro Já são oito
Eu vou ver quem é que vem
Tá chegando o Presidente
no seu palácio real

Já são sete Já são oito
O rei Congo chegou
Chegou com elefantes
sapato de verniz

Iaiá fez quentinho
Rei Congo drumiu
Papagaio pena verde
ai, me conte que tu viu

O elefante foi à guerra
mas morreu o capitão
Deixou um anel de prata
e um tambor de papelão

Ai já vem chegando o sono
numa rede de algodão
Pra fazer um dormezinho
Pum-pum Para-ti Pum

Rei Congo Sorongo
sapato de verniz
Iaiá fez quentinho

Cante bem devagarzinho
Pum-pum Para-ti Pum


(Raul Bopp)