segunda-feira, 30 de setembro de 2002

Eros e Psiquê


Conta a lenda que dormia
Uma princesa encantada
A quem só despertaria
Um infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que a princesa vem.

A princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma guirlanda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino -
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A princesa que dormia.

(Fernando Pessoa)


(Pierre Verger - Dakar, Senegal, anos 50)

sábado, 28 de setembro de 2002

para ser grande, sê inteiro: nada
teu exagera ou exclui.
sê todo em cada coisa. pôe quanto és
no mínimo que fazes.
assim em cada lago a lua toda
brilha, porque alta vive.


(Ricardo Reis)

para uma acadêmica sandy



Fiquei louco com o bolo de banana da minha sogra. Delícia!

(Festa da Ju - Menote)

E foi aniversário da Juh-Lai-Lama, com uma festa num terraço que tinha muito samba-rock e uma vista linda da cidade. E tinha Carol, Schroeder, Zé, Pander, Tantri, Ciba, Menote, Puliça, Melissa, Dani, Patrícia, um tanto de gente...E todos ficaram iluminados!
Debaixo d'água

Debaixo dágua tudo era mais bonito
mais azul mais colorido
só faltava respirar

Mas tinha que respirar

Debaixo dágua se formando como um feto
sereno confortável amado completo
sem chão sem teto sem contato com o ar

Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia

Debaixo dágua por encanto sem sorriso e sem pranto
sem lamento e sem saber o quanto
esse momento poderia durar

Mas tinha que respirar

Debaixo dágua ficaria para sempre ficaria contente
longe de toda gente para sempre
no fundo do mar

Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia

Debaixo dágua protegido salvo fora de perigo
aliviado sem perdão e sem pecado
sem fome sem frio sem medo sem vontade de voltar

Mas tinha que respirar

Debaixo dágua tudo era mais bonito
mais azul mais colorido
só faltava respirar

Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia

(Arnaldo Antunes)


E passou o aniversário do Lindus, e eu nem pude comparecer! Que puxa...

E na vida, se tudo pode acontecer..., lhe desejo o melhor; ou melhjor, o meu desejo...

se tudo pode acontecer...
se pode acontecer qualquer coisa
um deserto florescer
uma nuvem cheia não chover

pode alguém aparecer
e acontecer de ser você
um cometa vir ao chão
um relâmpago na escuridão

e a gente caminhando de
mão dada de qualquer maneira
eu quero que esse momento
dure a vida inteira
e além da vida ainda
de manhã no outro dia
se for eu e você
se assim acontecer


se tudo pode acontecer...


(Arnaldo Antunes/Paulo Tatit/Alice Ruiz/João Bandeira)




... presentes do Recife ...


Todo vermelho, descascando, com vaquinhas e casinhas de presente voltei. Fiquei com saudades de casa, e do meu amor, mas adorei Recife. Praia, canal, praia, canal... parece que água é tudo que a gente pode ver ali. Mas tem muito mais: bolo de rolo, tapioca, carne de bode, sovaco de cobra, suco de mangaba, torta de cajá, cartola, queijo manteiga, queijo coalho, ensopado de siri, camarão, pirão de caranguejo, casquinha de caranguejo, peixe agulha frito, água de coco na praia, humm!!! E um paradoxo: o povo que é tão áspero e cortante no comércio é maravilhoso na hora de nos acolher. Tive a sorte de encontrar muita gente legal, que me levou pra conhecer toda a cidade (a velha e a nova). E quantas pontes, quantas ruas, quantas casas antigas... meu Lindus ia querer todas pra gente morar. E tem Olinda, ali bem pegadinha - Ouro Preto à beira-mar, com as mais bonitas talhas que já vi. E o Porto, de Galinhas, às quais Schroeder mandou abraços. E tome tapioca na praça, peixe agulha no mirante. Irmandade de Santa Gertrudes, ofício de mulheres. Azulejo português na parede, paliçada holandesa nos subterrâneos. Trinta graus de sol no quengo. E Eckhout!!

Depois desta semana minha cidade me pareceu mais calma que nunca...

sábado, 7 de setembro de 2002

a gete sempre acha que é
Fernando Pessoa.
(Ana Cristina Cesar)

e o tempo tornou-se infinitamente longo:
o início ficou distante para trás;
para frente, parece eterno.

e, no entanto,
foi apenas um começo.

Dedicatória, com uma Mensagem, para uma pessoa.

6 de maio de 2002

sexta-feira, 6 de setembro de 2002

É aniversário da G.H., que está sempre de parabéns. Quais felizes surpresas ainda passarão diante dos olhos desta menina séria?

hoje é dia de festa hoje é dia de festa é dia de jogar flores no mar é dia de dar presente para Iemanjá tá florido tá bonito tá querido tá garrido tá amigo sem perigo tá contigo tá comigo. (Jorge Benjor)

Seiscentos e Sessenta e Seis


A vida é um dos deveres que nós trouxemos para fazer em casa
Quando se vê, já são seis horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ª feira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre, sempre em frente...

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

(Esconderijos do Tempo - Mario Quintana)




(Cello, Old Man, Little Girl - Norman Rockwell)
Para Heloisa

Há alguém, todos o sabem, a quem admiro. Alguém para quem um dia olhei como quem olha um quadro. Na sua imagem busquei um exemplo de conduta: a ética da profissão, a estética do bem viver. E o que me mostrou, na face, foi um espelho: a imagem refletida e profética do que poderei ser. Encorajando-me, é uma casa de espelhos, num parque de diversões; espelhos que me fazem sentir maior, ou melhor. Algo a mais do que sou. Mas, o que vi, e ela não sabe, foi uma delicadeza, uma sensibilidade tamanha que comovem; a mim, e a quem me ouve dela falar. Por fim espero que, um dia, ela descubra: posso retribuir; e no momento certo refletir-lhe, em meu rosto, a força que dela veio. No entanto, por hora eu canto...

se meu mundo cair, então
caia devagar
não que eu queira assistir sem saber evitar
cai por cima de mim
quem vai se machucar
ou surfar sobre a dor até o fim
cola em mim até ouvir
coração no coração
o umbigo tem frio e arrepio de sentir
o que fica prá trás
até perder o chão
ter o mundo na mão
sem ter mais onde se segurar
se meu mundo cair
eu que aprenda a levitar

(José Miguel Wisnik)




(Auto-Retrato - Norman Rockwell)


Do mesmo disco, tenho certeza que a Regina vai adorar Flores Horizontais, de Jozé Miguel Wisnik sobre uma poesia de Oswald de Andrade.

Flores Horizontais

flores horizontais
flores de vida
flores brancas de papel
da vida rubra de bordel
flores da vida
afogadas nas janelas do luar
carbonizadas de remédios
tapas pontapés
escuras flores puras
putas suicidas sentimentais
flores horizontais
que rezais
com Deus me deito
com Deus me levanto



(Composition avec nu - Louis-Camille d'Olivier)



Ouvi o novo disco de Elza Soares. Lindo; varia de forte a melancólico, de sarcástico a poético... o melhor mesmo é ouví-lo. E uma das delícias é Fadas, de Luiz Melodia, uma homenagem da cantora a seu falecido amigo Piazzolla.

Fadas

devo de ir, fadas
inseto voa e cego sem direção
eu bem-te-vi, nada
ou fada borboleta ou fada canção
as ilusões, fartas
a fada com varinha virei condão
rabo de pipa, olho de vidro
pra suportar uma costela de Adão
um toque de sonhar sozinho
te leva em qualquer direção
de flauta, remo ou moinho
de passo a passo passo

(Luiz Melodia)


(Cupido - Norman Rockwell)

Mais um aniversário. Mais amor. E meu presente:

Mais simples

é sobre-humano amar
'cê sabe muito bem
é sobre-humano amar, sentir,
doer, gozar,
ser feliz
vê que sou eu quem te diz
não fique triste assim
é soberano e está em ti querer até
muito mais
a vida leva e trás,
a vida faz e refaz
será que quer achar
sua expressão mais simples?
mas deixa tudo e me chama
eu gosto de te ter
como se já não fosse a coisa mais humana
esquecer
é sobre-humano viver
e como não seria
sinto que fiz essa canção em parceria
com você
a vida leva e traz
a vida faz e refaz
será que quer achar
sua expressão mais simples?


(José Miguel Wisnik)

terça-feira, 3 de setembro de 2002



Gustav Klimt
A mais bonita

(Chico Buarque)


Não, solidão, hoje não quero me retocar
Nesse salão de tristeza onde as outras penteiam mágoas
Deixo que as águas invadam meu rosto
Gosto de me ver chorar
Finjo que estão me vendo
Eu preciso me mostrar

Bonita
Pra que os olhos do meu bem
Não olhem mais ninguém
Quando eu me revelar
Da forma mais bonita
Pra saber como levar todos
Os desejos que ele tem
Ao me ver passar
Bonita
Hoje eu arrasei
Na casa de espelhos
Espalho os meus rostos
E finjo que finjo que finjo
Que não sei


Essa música me lembra a G.H., e o Schroeder também.
Para a Menina no Espelho, um trecho de um trabalho meu:

Uma mulher com duas faces, um elmo dourado em sua cabeça; um cervo próximo a ela; um espelho em sua mão esquerda, na direita uma flecha, e um peixe Rêmora nesta enroscado. O Elmo significa a Sabedoria do homem prudente em estar, para defender-se, armado com sábios Conselhos; o cervo mostra que devemos ruminar antes de resolver alguma coisa. O espelho nos ordena examinar nossos defeitos, conhecendo a nós mesmos. A Rêmora, que pára um navio, alerta para não tardamos em fazer o Bem, quando o Tempo favorece.(Cesare Ripa)

Alegórica mulher, a Prudência tem duas faces. Mirando-a, encontramos uma corriqueira face humana. Uma, apenas. O alegorista, que a esta dama nos faz ver, por um significativo artifício, escondeu seu segundo rosto na face de um espelho. Quase ingênua, um tanto alheia, esta senhora Prudência olha a si, à sua outra face, que se posta sobre a externa face de vidro. Enfeitiçada ou perdida parece esta mulher, imersa que está na grandiosa tarefa que este atributo, seguro em sua mão esquerda, lhe parece ditar: “examine seus defeitos”, “conheça a si própria”.

Ora, sua face oculta, a outra face, nada mais é que a primeira, em imagem especular. Invertida, mas não menos real que a outra – pois quem poderia afirmar, com toda certeza, qual rosto mira a qual? Não é a segunda face a da beleza, com a qual tendemos nos ver: é a dos defeitos, nosso renegado rosto sombrio.

Mas, perigo, há: o de ver nossa outra face: conhecer a si próprio não é tarefa que se cumpre impunemente. As conseqüências são muitas, às vezes trágicas. Perder-se – um espelho é também labirinto. Através de sua superfície acessamos o desconhecido de nós, de nossa natureza, história e mundo. Mundo invertido e avesso que se abre como fonte de conhecimento, e perdição. Num baralho austríaco do século XV um coringa do sexo feminino segura um espelho para – para nós! A imagem do espelho, figura masculina de torvo aspecto, traz a seguinte inscrição: ‘Coringa feminino olhando para o seu rosto de idiota risonho ao espelho.’

Voltamos à Prudência! Esta dama nos alerta: o olhar que lançamos ao espelho, o ver-se invertido de nós no outro, o olhar que constrói nossa identidade e inventa no outro uma alteridade que o separa de nós, que deixa de ser o olhar-ponte que nos liga, une, trazendo o outro para dentro de mim, e me levando até ele, é na verdade um olhar injusto, que não vê mais que o desejado, que nega ao outro a possibilidade de existência na visibilidade – na sua real visibilidade – que o prende do outro lado do vidro, para que não nos ameace, com sua diferença, a integridade. Lembra também que além da face, da margem do espelho, há existência, há um outro que não é apenas miragem, que sobrevive debaixo dos escombros das projeções de nossos medos, desejos e esperanças, que respira seus próprios medos, desejos e esperanças, mas que se encontra atado ao vazio de exercer a sua identidade perante nós: pois nós não o veríamos! A Prudência diz: mire-se no espelho do outro, reconheça-o no espelho, acredite no que vê: ele é outro. Então, aja... A rêmora, que soluciona conflitos e litígios, encontra-se do outro lado da plana face, é especular.

... em Paris durante a primeira metade do século XVIII, o Pe. Zallinger, da Companhia de Jesus, planejou um estudo das ilusões e erros do povo de Catão; num levantamento preliminar anotou que o Peixe era um ser fugitivo e resplandecente que ninguém havia tocado, mas que muitos alegavam ter visto no fundo dos espelhos. (...) Segundo Giles, a crença no Peixe é parte de um mito mais amplo, que se refere à época legendária do Imperador Amarelo.

Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além disso, muito diferentes; não coincidiam nem os seres nem as cores nem as formas. Ambos os reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, a gente do espelho invadiu a Terra. Sua força era grande, porém ao cabo de sangrentas batalhas as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Este rechaçou os invasores, encarcerou-os nos espelhos e lhes impôs a tarefa de repetir, como numa espécie de sonho, todos os atos dos homens. Privou-os de sua força e de sua figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia, entretanto, livrar-se-ão dessa mágica letargia.

O primeiro a despertar será o Peixe. No fundo do espelho perceberemos uma linha tênue e a cor dessa linha não se parecerá com nenhuma outra. Depois, irão despertando as outras formas. Aos poucos diferirão de nós, aos poucos deixarão de nos imitar. Romperão as barreiras de vidro ou de metal e desta vez não serão vencidas. (...)
No Yunnan não se fala do Peixe e sim do Tigre do Espelho. Outros acreditam que antes da invasão ouviremos do fundo dos espelhos o rumor das armas.
(Borges)
Com minha morte, muita coisa ficou por dizer. Minha boca calou-se para sempre. Enquanto os dedos de Schroeder cantavam ao piano pela Europa, e encantando ouvidos na casa de Mozart. Marcie mudou-se para longe; deixando Bobis de bob’s. Formaram-se Creia, Mel e Ana H; já Carol, está quase. Nasceram Frida e Lorie; respectivamente, minha sobrinha e minha filha- duas lindas gatinhas. E eu aqui, no limbo, ausente.



A gata de Lenora
Ando caído de amor, pelos caicais de amor, do meu amor.
IX
ONDINA

... Eu acreditava escutar
uma vaga harmonia que o meu sonho encantava,
um sussurro próximo, semelhante no ar,
ao canto entrecortado de uma voz triste terna.

(Os dois gênios - Ch. Brugnot)


- Escuta! Escuta! Sou eu, Ondina, quem toca levemente com gostas de água os sonoros losangos de tua janela iluminada por melancólicos rios de luar; e vê aí, vestida de tafetá, a dama do castelo que do balcão contempla a formosa noite estrelada e o belo lago adormecido.
“Cada onda é uma ondina que nada na corrente, cada corrente é um caminho que serpenteia até o meu palácio, e meu palácio está feito de matérias fluidas, no fundo do lago, no triângulo do fogo, da terra e do ar.”
- “Escuta! Escuta! Meu pai, coaxando, fustiga a água com um ramo de amieiro verde; e minhas irmãs acariciam com seus braços de espuma as frescas ilhotas de ervas, de nenúfar, de gladíolo, ou zombam do salgueiro decrépito e barbado que pesca com uma vara.”
Terminada a canção, suplicou-me que pusesse eu seu anel no meu dedo para ser esposo de uma ondina, e visitar com ela seu palácio e ser o rei dos lagos.
Como eu respondesse que amava uma mortal, zangada e despeitada verteu algumas lagrimas, soltou uma gargalhada e desvaneceu-se entre aguaceiros que escorriam claros em meus vidros azuis.

(Gaspar de la nuit - Aloysius Bertrand – 1842)


Há muito, gosto dessa estória. De amor frustrado e loucura. Gosto tanto, talvez, como Ravel, que a narrou em música. Gaspar de la nuit – Trois poèmes pour piano d’aprés Aloysius Bertrand. Digo narrou-a, pois esta música, diferente da igualmente bela Ondine de Debussy, narra, e não descreve. Debussy, foi um mestre da narração musical. Suas composições, erigidas na ânsia da criação de imagens sonoras, nos fazem ver os objetos aos quais se dedica – e, entre estes, a ondulante criatura. Para tanto, lança mão dos procedimentos descritivos – procedimentos estes que nos apresentam o estado, a natureza dos seres ou coisas a que se referem. Que nos transmitem suas características, e suas formas. Que nos fazem vê-los, mentalmente, como se à nossa frente estivessem. Que suprem sua ausência, criando imagens que, com um máximo de perfeição, o substituem. Simulacros: imagens que têm existência própria, pois se desprende do corpo que as emitem; diria Lucrécio. E, já Ravel, este nos conta uma estória. A estória do amor frustrado de Ondina, onde o que conta é menos saber são suas feições, ou as daquele que a rejeita. E sim, de se transmitir a sucessão de estados – psicológicos, quem sabe – pelos quais passam a rainha dos lagos. Estados que se transformam, e que são encadeados, por ações: por sua declaração de amor, pela reação negativa do homem que ama, pela sua desilusão e desespero, pelo seu desaparecer. E Ravel narra, como todo bom narrador, colocando, na estória, sua própria experiência; sua música. E os dedos do pianista fazem surgir Ondina, Ondina e sua declaração, Ondina e sua súplica, e a gargalhada de Ondina, para, enfim, Ondina desfazer-se no ar, como os sons de um piano.

Para ouvir Ondine, de Ravel, prefiro a gravação de Ivo Pogorelich; de Debussy, a de Arturo Bennedetti Michelangelo.
Post-Mortem

Levanto do meu leito de noturno descanso. E conto a (des)matéria de minha pós-vida. Sábado. Dia da criação. Por macabro descuido, ergo-me demasiado cedo do leito onde jazia. Aproveito o momento para entreter-me com Os outros – filme bom, embora previsível para quem o vê do lado de cá. Assim, começou o dia. Nublado e frio. E, à noite, antes de recolher-me, elevo meu espírito com uma boa leitura.

LIVRO TERCEIRO DOS FANSTASIAS DE GASPAR DA NOITE
A Noite e suas Ilusões

II

Scarbó


Deus, meu, concede-me na hora da morte, as súplicas de um monge, uma mortalha de pano, um ataúde de pinho e em ligar seco. - As Ladainhas do Senhor Marechal

Morras absolvido ou condenado – murmurava Scarbó esta noite em meu ouvido –, e terás por mortalha uma teia de aranha, e já me encarregarei de amortalhar a aranha contigo.
Com os olhos vermelhos de tanto chorar, respondi: “Dá-me ao menos por mortalha uma folha de álamo, que me traga o hálito do lago.”
- Não – respondeu sardônico o anão –: serás pasto do escaravelho que todas as tardes sai a caçar mosquitos deslumbrados pelo sol poente.
- Preferes, pois – repliquei sem deixar de chorar –; preferes que uma tarântula com tromba de elefante me sorva?
- Bem, consola-te – acrescentou –. Terás por mortalha as tiras cravejadas de ouro de uma pele de serpente, nas quais te envolverei como uma múmia.
“E da tenebrosa cripta de São Benigno, onde te deixo de pé contra a parede, poderás ouvir à vontade como choram as crianças que estão no limbo.”.

(Gaspar de la nuit - Aloysius Bertrand – 1842)