terça-feira, 20 de agosto de 2002



(A flauta mágica - Marc Chagall)


Senhores, Imperadores, Reis, Duques e Marqueses, Condes, Fidalgos e burgueses, e todos vós que desejais conhecer as diferentes raças e as variedades das diversas regiões do globo, tomai este livro e mandai que vo-lo leiam... E todos que o lerem e entenderem devem crer nele, pois as coisas que conta correspondem à verdade; e eu vos certifico de que, desde que Deus Nosso Senhor modelou Adão e Eva com suas mãos até hoje em dia, não houve cristão, nem sarraceno, nem pagão, nem tártaro, nem índio, nem homem algum de geração alguma, que tanto tivesse visto, investigado e sabido das maravilhas do mundo... por isso vos digo que seria grande desventura não ficarem escritas todas as preciosas maravilhas que viu e ouviu, para que os povos que não as viram nem conheceram delas tomem conhecimento... (Marco Pólo) Como a nenhum ser humano é possível, em sua existência, ver pessoalmente todos os bens terrestres - não só porque o universo vive em perfeita transmutação, como, também, devido à vastidão do mesmo -, Deus concedeu-nos os meios de tornar essas coisas acessíveis aos nossos olhos, quer através dos escritos ou gravuras, quer através das obras ou indústrias dos que delas tiveram conhecimento. Assim, muitas antigas fabulas... são representadas por figuras, creio que só para a satisfação humana; ao passo que podemos ver, sem necessidade de representação, várias outras coisas, como é o caso das numerosas espécies animais diariamente ao alcance de da nossa vista. Daí a resolução de descrever (André Thevet). Alguém poderia dizer agora: “Se eu quisesse mandar imprimir tudo o que experimentei e vi na vida, faria um livro muito grosso.” Tem razão, e segundo esse ponto de vista eu também poderia escrever muito mais ainda. Porém não é o caso. (André Thevet)... minha intenção é a de perpetuar aqui a lembrança de uma viagem (Jean de Lery). Quem viaja tem muito o que contar”, diz o povo (Walter Benjamin)... Não sou o primeiro nem serei o último a conhecer tais viagens marítimas, terras e povos. Os que me precederam também nem sempre passaram contentes por suas experiências de viagem (Hans Staden); perguntando Anacharsis de que expessura eram as pranchas, ou tábuas, com as quais se armavam os navios, respondeu-lhe alguém ser apenas de quatro dedos; ao que replicou o filósofo: “A vida dos que viajam nesses navios não está, também, mais distante da morte (André thevet)... Qualquer um pode imaginar que a disposição de quem está ameaçado de morte é muito diferente daquela de quem fica observando à distância, ou apenas ouvindo falar de tais casos (Hans Staden); não porque ele teria qualquer saber secreto pessoal a nos revelar, mas muito mais porque, no limiar da morte, ele aproxima nosso mundo vivo e familiar deste outro mundo desconhecido e, no entanto, comum a todos. (Jeanne Marie Gagnebin). É no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens – visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso –, assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares (Walter Benjamin). E o moribundo é capaz de discernir, no substrato de sua existência, aquilo que lhe é inefavelmente particular e que marca sua solitária individualidade – sua vivência (Jeanne Marie Gagnebin). Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. (Guimarães Rosa): Depois de uma tempestade, vê-se o poder de persuasão do ar. Meus méritos tornam-se-me evidentes, e me dominam, embora eu não lhes ofereça nenhuma resistência. Caminho e meu compasso é o compasso deste lado da rua, da rua, do bairro inteiro. Com direito, sou responsável por todos os brindes, por todos os casais de amantes em seus leitos, nos andaimes das construções, nas ruas escuras, apertadas contra as paredes das casas, nos divâs dos prostíbulos. Comparo meu passado ao meu futuro, mas ambos parecem-me admiráveis, não posso outorgar a palma a nenhum dos dois, e apenas protesto diante da injustiça da Providência, que me favoreceu tanto. Mas quando entro em meu quarto, sinto-me um tanto pensativo, embora ao subir as escadas não encontrasse nada que justificasse esse sentimento. Não me serve de consolo abrir de par em par a janela, e ouvir que ainda se está tocando música em um jardim (Franz Kafka). Jamais quis tão pouco nesta vida ouvir numa certa hora a palavra adeus (Cacaso). Ah se pelo menos o pensamento não sangrasse! Ah se pelo menos o coração não tivesse memória! Como seria menos linda e mais suave minha história! (Cacaso): Uma noite de lua pálida e gerânios ele viria com boca e mãos incríveis tocar flauta no meu jardim. Estou no começo de meu desepero e só vejo dois caminhos: ou viro doido ou santo... Quando ele vier, porque é certo que vem... de que modo vou abrir a janela, se não for doido? Como a fecharei, se não for santo? (Adélia Prado)


E de que morreu Boli? De narrativas, por certo.

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