quarta-feira, 30 de outubro de 2002



(Milton Nascimento - retrato por Juan Esteves)


Quando adolescente, tinha para mim que Milton Nascimento era um dos maiores intérpretes da música brasileira, e uma das mais belas e bem trabalhadas vozes que existiam. Contudo, eu não o ouvia – não aceitava seu repertório. Na verdade, eu me esforçava em não gostar de suas músicas, ou de qualquer música de seus companheiros de esquina: adolescente que era , achava importante afastar-me do gosto musical da geração anterior à minha. Por vezes, a recusa a músicas como Caçador de Mim, Coração de Estudante e Nos Bailes da Vida (para ater-me às mais conhecidas) decorria de uma avaliação errônea de meus sentimentos. Soavam-me, aquelas músicas, como frutos que tendiam à mobilização demasiado fácil e imediata das emoções dos ouvintes. E que, para tanto, empregavam símbolos de uma forjada mineiridade. Mas, na verdade, aquelas músicas me emocionavam – e viriam, hoje, a me emocionar mais ainda –; e isso não era aceitável. O problema não estava nas músicas, mas em minha sensibilidade ainda frágil, ainda não impregnada da atmosfera das cidades históricas abarrotadas de estudantes e de sua cultura, dos ares montanhosos, dos festivais de inverno, do barroco. E do gosto por um determinado tipo de música e de teatro que se faz na rua, em meio a pessoas que, de desconhecidas, tornam-se amigos e companheiros, mesmo que por alguns instantes. Um tipo de cultura e um tipo de sentimento e postura que ainda marcam a arte mineira, como a do Grupo Galpão. Amizade e fraternidade (formas distintas de se expressar ao tratamento cordial entre pessoas), sopraram-me, são as chaves para o entendimento da obra do Clube da Esquina. Atuando num momento em que os artistas brasileiros buscavam alternativas para lidar com a censura ou enfrentar o regime militar – a exemplo das canções de protesto –, o Clube, assim como a Bossa Nova, parecia-me um movimento desprovido de conteúdo contestatório, a despeito de sua imensa força de mobilização e encantamento. No entanto, a aparente frugalidade das músicas do Clube era, na verdade, um refinado meio de mobilizar valores sociais importantíssimos para a construção de uma vida pública sadia no Brasil. Amizade e fraternidade, antes que um apelo fácil aos nossos sentidos e sentimentos, eram poderosos instrumentos de mobilização das pessoas em prol da construção de bens comuns. Não por acaso, são estas as forças mobilizadoras que se detona para a construção do cooperativismo e, em escala menor, dos mutirões e campanhas de solidariedade. O Brasil é um país no qual a esfera pública encontra-se sempre por instaurar ou, quando se forma, não se perpetua. Problema este que foi, repetidas vezes, atribuído a uma infiltração desvirtuadora de valores privados na esfera pública. Mas, há que se notar que a construção do público no Brasil, quando ocorre, vem quase sempre impulsionada por valores privados. Fato este que talvez indique não um problema, mas uma especificidade da formação da política e do bem público no Brasil: a sua não independência da esfera privada que, através dos valores e sentimentos que gera, dá forma e vigor à esfera pública . Milton Nascimento e seus companheiros pareciam pressentir aquilo que os cientistas sociais estão a descobrir: ao se chamar à cena a amizade e a fraternidade, mesmo que através da música, é possível mobilizar forças de transformação e gerar um clima de cooperativismo e de ação conjunta. Um clima de irmandade que reapareceu no Brasil quando as pessoas se uniram em torno de um projeto de nação, de um sentimento de esperança e, principalmente, de um ideal, mesmo que inconfesso, de companheirismo. Quem nos últimos dias não recebeu nas ruas um sorriso, um aceno, uma buzinada simpática de um total desconhecido apenas pelo fato de estar usando um broche em forma de estrela? O princípio é o mesmo, mas os meios de sua manifestação são diferentes: antes foi a música, hoje, as urnas. Os tempos não mudaram, foram mudados. E agora podemos expressar, diretamente e sem medo, o que, individualmente e em conjunto, desejamos; ainda que a voz de Milton Nascimento continue sendo a mais bela.

Nenhum comentário: