Confesso o desprezível ciúme que me abraçou estes dias, apertando o peito ao ver o nome do meu mais secreto prazer na boca de todos. Virginia Woolf. Mais desprezível me sinto quando percebo que a culpa desse renascimento da minha autora predileta se deve ao mais belo filme que assisti recentemente: As Horas. Se este filme foi capaz de nos trazer novamente a vontade de ler Virginia Woolf isto se deve, acredito, menos por haver sido construído a partir de referências à vida e obra desta escritora, que por uma característica que os une. O filme, como a escrita de Virginia Woolf, envolve-nos como o som que vem de uma bem conduzida orquestra. Uma melodia que nos capta o pensamento, que nos retira do transcorrer do tempo que é comum a todos e nos lança em seu próprio tempo, em seu próprio andamento, para nos conduzir através de uma seqüência imagens que cria. Imagens habituais e cotidianas mas que, não esperávamos!, são pegas em flagrantes de íntima beleza. No filme, tudo é consonância - fotografia, texto, atuações e trilha. Mais que grandes nomes, temos ali unidade e equilíbrio; ou seja, beleza. Uma beleza à altura da obra de Virgínia Woolf. Uma beleza que nos pega pela mão, e nos conduz suavemente por onde ela deseja que passemos. Uma beleza de suavidade e tensão que faz dos minutos, que faria das horas, um instante apenas de total contemplação.
E assim é a obra de Virginia Woolf. O tempo que narra não é o tempo do mundo, nem mesmo o da história. É o tempo que transcorre no interior que cada um de seus personagens; tempos íntimos e pessoais que, às vezes, se interceptam ou se chocam. Os acontecimentos que dão andamento ao que se conta não são palpáveis ou visíveis ao observador comum. São as pequenas transformações que cada um sofre com o passar do tempo. Não do tempo que nos marca a carne e nos deteriora exteriormente. Mas aquele que altera pouco a pouco os ânimos e paixões dos personagens, mudando-os em consonância ou dissonância com a forma como são vistos, de fora, pelos outros; com as posições e os códigos de um mundo que, em vão, tenta controlá-los. Resulta disto um tipo inusitado de narração, que é antes uma grande cadeia de descrições. Para contar uma estória, Woolf apresenta-nos uma bolha de sabão. Na superfície da bolha, nos faz ver um reflexo, uma imagem de uma pequena parcela do mundo que logo se explode dando lugar a outra bolha, e outra imagem. E desta, faz brotar outra, e mais outra, numa infinita e encantadora sucessão.
Agora, porém, era verão. Os pássaros haviam-na despertado. Como cantavam! – atacando a madrugada assim como uma porção de meninos-cantores atacam uma trota gelada. Obrigada a escutar, estendera a mão para sua leitura favorita – um compêndio de História – e gastara as horas, entre as três e as cinco, pensando nos bosques de rododendros em Picadilly, quando o continente inteiro, conforme ela entendia, ainda não dividido por um canal, era um só, habitado por monstros com corpo de elefante, pescoço de foca, erguendo-se lentamente e, supunha ela, latindo; o iguanodonte, o mamute e o mastodonte, dos quais, presumivelmente, descendemos, refletia, abrindo bruscamente a janela.
Levou cinco segundos no tempo real, mas muito mais no tempo imaginário, para distinguir Grace, que chegava com a louça azul sobre uma bandeja, do monstro grunhidor coberto de couro, que, quando a porta se abriu, se achava na iminência de derrubar uma árvore na penumbra verde, cheia de vapor. Naturalmente, sobressaltou-se quando Grace depôs a bandeja e disse: - Bom dia, madame. – E pensou: “Ela é doida”, ao sentir pousar em seu rosto aquele olhar vago, dirigido em parte à fera no charco, em parte à criada de vestido estampado e avental branco.(Virginia Woolf - Entre os Atos)
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