terça-feira, 3 de setembro de 2002

IX
ONDINA

... Eu acreditava escutar
uma vaga harmonia que o meu sonho encantava,
um sussurro próximo, semelhante no ar,
ao canto entrecortado de uma voz triste terna.

(Os dois gênios - Ch. Brugnot)


- Escuta! Escuta! Sou eu, Ondina, quem toca levemente com gostas de água os sonoros losangos de tua janela iluminada por melancólicos rios de luar; e vê aí, vestida de tafetá, a dama do castelo que do balcão contempla a formosa noite estrelada e o belo lago adormecido.
“Cada onda é uma ondina que nada na corrente, cada corrente é um caminho que serpenteia até o meu palácio, e meu palácio está feito de matérias fluidas, no fundo do lago, no triângulo do fogo, da terra e do ar.”
- “Escuta! Escuta! Meu pai, coaxando, fustiga a água com um ramo de amieiro verde; e minhas irmãs acariciam com seus braços de espuma as frescas ilhotas de ervas, de nenúfar, de gladíolo, ou zombam do salgueiro decrépito e barbado que pesca com uma vara.”
Terminada a canção, suplicou-me que pusesse eu seu anel no meu dedo para ser esposo de uma ondina, e visitar com ela seu palácio e ser o rei dos lagos.
Como eu respondesse que amava uma mortal, zangada e despeitada verteu algumas lagrimas, soltou uma gargalhada e desvaneceu-se entre aguaceiros que escorriam claros em meus vidros azuis.

(Gaspar de la nuit - Aloysius Bertrand – 1842)


Há muito, gosto dessa estória. De amor frustrado e loucura. Gosto tanto, talvez, como Ravel, que a narrou em música. Gaspar de la nuit – Trois poèmes pour piano d’aprés Aloysius Bertrand. Digo narrou-a, pois esta música, diferente da igualmente bela Ondine de Debussy, narra, e não descreve. Debussy, foi um mestre da narração musical. Suas composições, erigidas na ânsia da criação de imagens sonoras, nos fazem ver os objetos aos quais se dedica – e, entre estes, a ondulante criatura. Para tanto, lança mão dos procedimentos descritivos – procedimentos estes que nos apresentam o estado, a natureza dos seres ou coisas a que se referem. Que nos transmitem suas características, e suas formas. Que nos fazem vê-los, mentalmente, como se à nossa frente estivessem. Que suprem sua ausência, criando imagens que, com um máximo de perfeição, o substituem. Simulacros: imagens que têm existência própria, pois se desprende do corpo que as emitem; diria Lucrécio. E, já Ravel, este nos conta uma estória. A estória do amor frustrado de Ondina, onde o que conta é menos saber são suas feições, ou as daquele que a rejeita. E sim, de se transmitir a sucessão de estados – psicológicos, quem sabe – pelos quais passam a rainha dos lagos. Estados que se transformam, e que são encadeados, por ações: por sua declaração de amor, pela reação negativa do homem que ama, pela sua desilusão e desespero, pelo seu desaparecer. E Ravel narra, como todo bom narrador, colocando, na estória, sua própria experiência; sua música. E os dedos do pianista fazem surgir Ondina, Ondina e sua declaração, Ondina e sua súplica, e a gargalhada de Ondina, para, enfim, Ondina desfazer-se no ar, como os sons de um piano.

Para ouvir Ondine, de Ravel, prefiro a gravação de Ivo Pogorelich; de Debussy, a de Arturo Bennedetti Michelangelo.

Um comentário:

Mara Corrêa disse...

Eu amo esta história, porém não sabia que existia coposiçoes musicais sobre a obra de Aloysius Bertrand.
Obrigada por me acrescentar conhecimento, e me fazer feliz.