terça-feira, 3 de setembro de 2002

Para a Menina no Espelho, um trecho de um trabalho meu:

Uma mulher com duas faces, um elmo dourado em sua cabeça; um cervo próximo a ela; um espelho em sua mão esquerda, na direita uma flecha, e um peixe Rêmora nesta enroscado. O Elmo significa a Sabedoria do homem prudente em estar, para defender-se, armado com sábios Conselhos; o cervo mostra que devemos ruminar antes de resolver alguma coisa. O espelho nos ordena examinar nossos defeitos, conhecendo a nós mesmos. A Rêmora, que pára um navio, alerta para não tardamos em fazer o Bem, quando o Tempo favorece.(Cesare Ripa)

Alegórica mulher, a Prudência tem duas faces. Mirando-a, encontramos uma corriqueira face humana. Uma, apenas. O alegorista, que a esta dama nos faz ver, por um significativo artifício, escondeu seu segundo rosto na face de um espelho. Quase ingênua, um tanto alheia, esta senhora Prudência olha a si, à sua outra face, que se posta sobre a externa face de vidro. Enfeitiçada ou perdida parece esta mulher, imersa que está na grandiosa tarefa que este atributo, seguro em sua mão esquerda, lhe parece ditar: “examine seus defeitos”, “conheça a si própria”.

Ora, sua face oculta, a outra face, nada mais é que a primeira, em imagem especular. Invertida, mas não menos real que a outra – pois quem poderia afirmar, com toda certeza, qual rosto mira a qual? Não é a segunda face a da beleza, com a qual tendemos nos ver: é a dos defeitos, nosso renegado rosto sombrio.

Mas, perigo, há: o de ver nossa outra face: conhecer a si próprio não é tarefa que se cumpre impunemente. As conseqüências são muitas, às vezes trágicas. Perder-se – um espelho é também labirinto. Através de sua superfície acessamos o desconhecido de nós, de nossa natureza, história e mundo. Mundo invertido e avesso que se abre como fonte de conhecimento, e perdição. Num baralho austríaco do século XV um coringa do sexo feminino segura um espelho para – para nós! A imagem do espelho, figura masculina de torvo aspecto, traz a seguinte inscrição: ‘Coringa feminino olhando para o seu rosto de idiota risonho ao espelho.’

Voltamos à Prudência! Esta dama nos alerta: o olhar que lançamos ao espelho, o ver-se invertido de nós no outro, o olhar que constrói nossa identidade e inventa no outro uma alteridade que o separa de nós, que deixa de ser o olhar-ponte que nos liga, une, trazendo o outro para dentro de mim, e me levando até ele, é na verdade um olhar injusto, que não vê mais que o desejado, que nega ao outro a possibilidade de existência na visibilidade – na sua real visibilidade – que o prende do outro lado do vidro, para que não nos ameace, com sua diferença, a integridade. Lembra também que além da face, da margem do espelho, há existência, há um outro que não é apenas miragem, que sobrevive debaixo dos escombros das projeções de nossos medos, desejos e esperanças, que respira seus próprios medos, desejos e esperanças, mas que se encontra atado ao vazio de exercer a sua identidade perante nós: pois nós não o veríamos! A Prudência diz: mire-se no espelho do outro, reconheça-o no espelho, acredite no que vê: ele é outro. Então, aja... A rêmora, que soluciona conflitos e litígios, encontra-se do outro lado da plana face, é especular.

... em Paris durante a primeira metade do século XVIII, o Pe. Zallinger, da Companhia de Jesus, planejou um estudo das ilusões e erros do povo de Catão; num levantamento preliminar anotou que o Peixe era um ser fugitivo e resplandecente que ninguém havia tocado, mas que muitos alegavam ter visto no fundo dos espelhos. (...) Segundo Giles, a crença no Peixe é parte de um mito mais amplo, que se refere à época legendária do Imperador Amarelo.

Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além disso, muito diferentes; não coincidiam nem os seres nem as cores nem as formas. Ambos os reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, a gente do espelho invadiu a Terra. Sua força era grande, porém ao cabo de sangrentas batalhas as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Este rechaçou os invasores, encarcerou-os nos espelhos e lhes impôs a tarefa de repetir, como numa espécie de sonho, todos os atos dos homens. Privou-os de sua força e de sua figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia, entretanto, livrar-se-ão dessa mágica letargia.

O primeiro a despertar será o Peixe. No fundo do espelho perceberemos uma linha tênue e a cor dessa linha não se parecerá com nenhuma outra. Depois, irão despertando as outras formas. Aos poucos diferirão de nós, aos poucos deixarão de nos imitar. Romperão as barreiras de vidro ou de metal e desta vez não serão vencidas. (...)
No Yunnan não se fala do Peixe e sim do Tigre do Espelho. Outros acreditam que antes da invasão ouviremos do fundo dos espelhos o rumor das armas.
(Borges)

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